ÁGUA CORTADA



    Pia da cozinha de minha casa. Foto RaiCFerraz/março-2009



    Minha postagem de hoje é uma crônica de meu cotidiano [ durante a semana passada] a partir de "recados" que eu resolvi inventar que remeti à página do FACEBOOK de uma amiga, muito querida, chamada Betânia:



    Fotografia RCF/março-2009


    PARTE I

    Betânia, tu nem sabe como eu aprendi esses dias com minha água cortada. Essa expressão "água cortada", tem coisa mais de classe do que isso? Tem não. Tem não, nêga. Olhe, neguim pode até ter particiado de umas três ações do Greenpace...ajudado a recolher assinatura para emenda contra as vaquejadas e tal e coisa, mas se nunca pronunciou: "Eita, porra, cortaram minha água!", nunca vivenciaram esse sentimento de pertença ao meio popular. Até mesmo o fato linguístico, a enunciação quase a-gramatical - "água cortada" - já é presença de um corpo que está num tempo e geografia simbolicamente marcados pela interdição ao acesso àquilo que é básico e imprescindível : a água. Minha neguinha, pois a pobre de minha sobrinha num tava juntando garafa pet pra fazer un "pufe" - é a febre do momento da decoração e da estética reciclagem no Brasil entre o meio popular e dos classe média "políticamente corretas"- tão cheias de boas intenções, mas tão conservadoras e feias que nem sei.

    PARTE II
    Eu disse " É o quê? Pufe, que bixiga de pufe...vou encher essas garrafas todinhas agorinha...mas agora pronto!Eu sem água pra fazer um café e tu intucando garrafa pra enfear a tua casa?Passa. E me ajuda a lavar e encher. Ela é boazinha, resignada??? É nada. Foi me ajudar reclamando e disse que eram emprestadas. Só sei que quando eu dei fé, era uma ruma de cilindros verdes plásticos, e o sol do pingo do mei dia, acendendo eles...pareciam uns butijões de luz esverdeada. Com essa água eu lavei prato, lavei as mãos, fiz café, lavava os pés antes de dormir...e ainda bebia, com um medo de se acabar, que só tu vendo. Eu olhei assim pra mim e disse: Rai, meu filho, só pode ter sido alguma praga de tanto que tu cantarolou o tal do "Ileaô, Ileaô"...sim, porque isso deve de grudar no "subconsciente" da gente. Só pode ser.






    PARTE III


    Pois a água de beber que butava na geladeira até uma lembrancinha de gosto de guaraná tinha...porque aquela química fica entranhada ali, né? Aquele cheiro que simula o do guaraná. Ôxe, com uma de um litro eu lavava os pratos do almoço, incluindo as panelas e os utensílios de fazer café: bule, colheres, xíca ras...e com metade da outra eu enxaguava. E tudo ficava bem limpo. Ainda aproveitava pra limpar a pia com aquela água do sabão. Os "banhos" mesmo eram em casa de Jorda.


    Pia do banheiro de minha casa...torneira sem água. RCF/03/2009




    PARTE IV
    Mas de manhã mesmo com uma garrafa de um litro dava pra escovar os dentes, lavar o rosto e sobrava direitinho um tanto pra me ajudar a fazer a barba. Nessas horas me vinha um ódio daquelas pessoas que ficam de magueira ligada lavando o terraço, lavando carro "estruindo" um bem tão impr encindível que a civilização e modernidade trataram de encanar. Ainda bem, que não é em garrafa pet. É por isso que a "água" - o elemento químico H2O e a palavra mesmo tem em nosso imaginário, no Nordeste do Brasil, esse sim bolismo de uma força expressiva que só nós conseguimos apreender bem.

    PARTE V
    "tá conversando miolo de pote?"; "só segura no pote quem tem a rudia por perto"..essas coisas. A chuva cantando. Quem entende isso? Os sapos tudo com a bixiga dizendo "foi quinhetos réis" -quem ouve isso? Ave Maria, tô morrendo de sede - Né hipérbole não. É de verdade. Nada de figuração de linguagem não. O bute. Nao é. É enunciação da secura, do medo do que os olhos d'água ceguem tudim e a gente seque. O candomblé é uma prática religiosa empregnada disso, desse sentimento de que falo: Oxum, Iemanjá, Iansã...e até os outros do panteão da mística-afro reverenciam o que é líquido e não tem vértebra, o que escorre e flui, o que molha como sagrados.


    Representação de OXUM - Orixá das águas doces.


    PARTE VI
    Nisso o Nordeste é África. Vocês sabem o que é o Velho Chico? Vocês sabem o que o Governo brasileiro está construindo e emplementando em termos de políticas para os recursos hídricos? E o Amazonas, o rio-mar, vocês sabem o que é aquilo? A água é um bem não renovável: meu Deus, que é que a gente anda ensinando ou deixando de ensinar em nossas escolas? Todos os três rios que correm pro mangue de Bayeux são esgotos a céu aberto. Eu quero um golim d'água.!Quero ver a fervura das coisas, o rebuliço dos trovão. Amanhã a Companhia de Águas vem re-ligar meu fornecimento. Eu nunca mais serei o mesmo. Quando eu sentar nos pufes de Joana, eu vou ter umas coisinhas - dois dedos de prosa pra conversar com ela.















    Vista Panorâmica do Rio Sanhauá - Bayeux/João Pessoa-PB/Brasil


    Saludos a todas e todos - que a gente tenha uma semana aquática.

    Mercu.rio. rai, o sedento - do Brasil

Total Pageviews